Fim do auxílio pode levar até 3,4 milhões para extrema pobreza

Morador da rua Meu Destino, Anderson cogita dar a casa como garantia, em um empréstimo, para comprar comida; Hudson voltou a morar com os pais para enfrentar um câncer; Lucimar deixou o isolamento e vende máscaras na rua para sustentar o filho. Com o fim do auxílio emergencial no ano passado, e se nada for colocado no lugar para amparar os mais vulneráveis, até 3,4 milhões de brasileiros a mais, como eles, podem cair na extrema pobreza – sobrevivendo com menos de US$ 1,90 por dia (algo como R$ 10), a linha de corte definida pelo Banco Mundial.

De acordo com uma pesquisa do especialista em política social Vinícius Botelho, publicada pelo Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas), com isso, a pobreza extrema neste ano pode ser maior do que a verificada no país antes da covid-19.

Nesse cenário, o número total de pessoas na extrema pobreza chegaria a 17,3 milhões em 2021, segundo os conceitos da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O aumento levaria o país ao pior patamar de pobreza desde o início da pesquisa, em 2012.

“Se nada for feito, a política social vai continuar com a mesma potência que em 2019, mas em uma realidade completamente diferente”, diz Botelho, ex-secretário dos ministérios da Cidadania e do Desenvolvimento Social. “Durante a pandemia, as pessoas perderam a renda do trabalho. Com o auxílio, essa queda foi compensada, mas, como não há alternativa para 2021, podemos cair em uma situação pior do que antes. É como se o Brasil tivesse feito um ‘voo de galinha’ na redução da pobreza.”

De 2012 a 2019, a variação das taxas de pobreza decorreu da dinâmica econômica – quando o País crescia, a pobreza era reduzida e vice-versa. No ano passado, no entanto, o auxílio emergencial (de cinco parcelas de R$ 600 e quatro de R$ 300) serviu para que a potência da política social aumentasse muito.

“O país já tinha muita gente na extrema pobreza, mas 2020 nos fez lembrar que esse problema precisava ser equacionado urgentemente. Só que o mesmo Brasil que fez um auxílio emergencial gigantesco virou o ano sem garantir o reajuste do Bolsa Família. Na verdade, pouca gente acreditava na criação de um programa novo”, diz Botelho.

Desigualdade

Um outro levantamento, do pesquisador Daniel Duque, do Ibre/FGV, aponta que a desigualdade deve aumentar quase 10%, por conta do fim do auxílio, e que 2020 deve ser um ano perdido na redução das diferenças sociais. O Índice de Gini (medidor da desigualdade, em que quanto mais próximo de 1, pior é a distribuição de renda) estava em 0,494 em novembro passado. Sem o auxílio, o indicador iria a 0,542 nas mesmas condições daquele mês.

Isso se daria porque a renda da população, em novembro, chegou a R$ 1.286, em média – patamar 5,8% maior, em termos reais, que o observado em maio, no início do pagamento das parcelas do benefício emergencial, segundo a Pnad-Covid, pesquisa feita pelo IBGE durante a pandemia, mas com metodologia diferente da Pnad Contínua.

Duque lembra que a desigualdade tinha caído em 2019 pela primeira vez desde 2014. “O saldo do ano passado, no entanto, deve empatar com o de 2019. A pandemia deve impedir a queda da desigualdade”, diz.

Com o fim do auxílio, o governo começa a discutir formas de ampliação do Bolsa Família, mas, entre os economistas, a avaliação é de que algo já deveria ter sido proposto. Pressionado para retomar o pagamento do auxílio, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ironizou na semana passada a possibilidade de estender o benefício. “Se pagar R$ 5 mil por mês, ninguém trabalha mais”, disse.

“É absurdo ele dizer que não pode fazer nada”, protesta o ambulante Hudson Moreira, de 49 anos. Com câncer, ele dependia do auxílio. Sem o benefício, agora conta com a aposentadoria dos pais, enquanto espera o fim da pandemia. “Infelizmente, votei nele e me arrependo. O presidente precisa lembrar que está lidando com vidas. E a pandemia é séria, não é um resfriado.”

Acabar com o auxílio emergencial é jogar de novo essas pessoas na pobreza ou na informalidade, avalia a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Úrsula Peres. “Esse boom de recursos movimentou a economia, impedindo uma queda drástica do consumo e beneficiando as finanças estaduais e municipais.”

Na última semana, o Estadão mostrou que o governo prepara uma medida provisória (MP) para reestruturar o Bolsa Família. A perspectiva é que sejam unificados benefícios já existentes, além do reajuste de valores e a criação de bolsas por mérito. Assim, 14,5 milhões de famílias seriam contempladas, ante as atuais 14,3 milhões.

Fonte: jornal O Estado de S. Paulo / Foto: Marcelo Camargo (Agência Brasil)

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